Vazio deixado por ela dá conta de seu talento e do fato de
que não devia ser fácil carregar tanta dor na voz
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Elis Regina em 1981 |
Já
se vão 30 anos sem Elis Regina, e ela permanece sendo um assunto
apaixonante, delicado, perturbador para o Brasil. Sua morte precoce, em janeiro
de 1982, foi um divisor de águas que traumatizou todo um país, de impacto até
hoje apenas parcialmente avaliado.
Em termos mais amplos, o trauma antecipou em alguns anos a
derrocada oficial da ditadura militar, num arco esquisito que se fecharia em
1989, com as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960 e a morte de
Nara Leão, outra cantora-símbolo do Brasil que deixava vagarosamente de
existir.
Para a chamada música popular brasileira, a morte de Elis significaria
a extinção de um paradigma heroico que não se renovaria mais, mas de que muitos
sentem até hoje saudades algo mórbidas.
Não é que de lá para cá não tenham despontado cantoras
brilhantes, dentro do paradigma triplo Elis Regina/ Gal Costa/ Maria Bethânia –
é possível citar Marisa Monte, Cássia Eller, Maria Rita, Ana Carolina ou
Vanessa da Mata, apenas para ficar em algumas das mais evidentes. O que não se
renovou após Elis foi a disposição de artistas (de quaisquer sexos) para ocupar
o papel épico e um tanto masoquista que a intérprete gaúcha, voluntária e
involuntariamente, desempenhou nos poucos e intensos anos em que esteve na boca
da cena musical local.
Frequentemente tomamos essa ausência como saudade, nostalgia
e vazio, mas não deixa de ser positivo que esteja vago há tanto tempo o trono
de Elis ou, antes dela, Carmen Miranda – aquele lugar do palco no qual alguém
sofre, se dilacera e sangra diante de nós para purgar nossas próprias e ocultas
dores.
Carne dilacerada em forma de música é o legado maior de
Elis, como comprovam gravações atemporais fulminantes como “20 Anos Blue”
(1972), “Na Batucada da Vida” (1974), “Como Nossos Pais” (1976), “Romaria”
(1977), “O Bêbado e a Equilibrista” (1979). O vazio deixado por ela dá conta do
talento da artista, mas também do fato de que não devia ser fácil carregar
tanta dor na voz.
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A cantora Elis Regina durante o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1967 |
A nostalgia dita de esquerda provocada pelo fantasma de Elis
engloba o mito da artista participante, politizada, que sangrava por si e por
“tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Foi outro dos caminhos doloridos
para ela, que veio de origem despolitizada, cantou para o Exército, foi cobrada
por isso e penou para conquistar prestígio junto a patrulhas MPB que não
admitiam nada além do pensamento único (ainda que pretensamente progressista).
Entre a Elis de “Viva a Brotolândia” (1961) e a reinvenção
como porta-voz da anistia, financiadora da aurora do PT (como conta André
Midani, seu diretor nas gravadoras Philips e Warner), se encontrava a morte.
Saudades à direita também emanam, talvez daqueles mesmos que
há décadas celebram o fato de os artistas contemporâneos não serem
“panfletários”, não misturarem música e política – mais patrulhas, embora no
vetor oposto. Sentem saudade de Elis à mesma medida que deploram, nos artistas
de hoje, atributos que Elis suou frio para possuir. Paradoxalmente, não é
difícil imaginar saudades mortais à direita e à esquerda brotando dos mesmos
peitos, digam-se eles “progressistas” ou “conservadores”.
A trajetória ideológica de Elis, de “apolítica” a
“direitista” a “esquerdista”, diz muito sobre o país que ela embandeirava.
Aconteceu conforme a menina pobre, filha de lavadeira, saltava,
progressivamente, de sub-cidadã marginalizada a cantora infanto-juvenil sem
personalidade, intérprete jovem abrutalhada, ícone pré-moderno, estrela
aculturada, intérprete sofisticada e sutil, tradutora sensível dos sentimentos
bossa-nova de Tom Jobim, musa de alguns amores e de todas as dores.
Paradoxalmente, quem mais lamenta a ausência de Elis 30 anos
depois se confunde, não raro, com quem mais rejeita artistas de origens
parecidas às dela no presente. Lamenta-se o fato de não termos “uma nova Elis”
como se combate o advento de um Michel Teló ou como se lastima a existência de
uma Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Tati Quebra-Barraco, Gaby Amarantos,
Sthefany ou Joelma da Banda Calypso.
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Elis Regina e Tom Jobim |
Ontem ou hoje, para os cultuadores da MPB de extração
universitária à qual Elis teve de se adaptar sem pertencer ao grupo, apenas a
MPB de extração universitária tem direito de existir – e deem-lhe imitadoras
“sofisticadas” exalando semelhança, morbidez, desânimo e falta de identidade
própria.
A vingança póstuma de Elis é que, tanto quanto teve de se
“educar” para pertencer aos clubes que não a queriam como sócia, ela é
cofundadora (morta, infelizmente) de um Brasil no qual meninas parecidas com
ela brilhariam sem depender dos “intelectuais” legitimadores de que ela foi
refém.

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